Memória após a invenção da escrita

De: Lúcio Wandeck

É razoável supor que o fato do homem vir inventando meios para anotar as
coisas (invenção da escrita - invenção da máquina de escrever - dos meios
magnéticos de gravação, etc) tenha modificado a sua memória, desde que, com
tantos dados anotados ele não tem que se esforçar para decorar tantas coisas
como precisava decorar o homem, por exemplo, do século XIV (antes da
invenção da imprensa)?


De: Silvia Helena Cardoso

Não creio que a invenção da escrita tenha modificado a memória do homem. Se assim fosse, o que pensar, por exemplo, da memória dos índios não civilizados e dos negros africanos vivendo em tribos primitivas que nunca usaram a escrita? Seria a memória deles melhor que a nossa? Ou, ao contrário, estariam aquelas memórias sendo modificadas por sua falta de recrutamento para conhecimentos complexos advindos por exemplo, da linguagem escrita, como documentos sobre ciência e tecnologia? Também não creio nisso, por acreditar que o cérebro daqueles indivíduos é igualzinho ao de, por exemplo, um intelectual vivendo em nossa sociedade moderna. Parece que a complexidade das atividades ditadas pelo cérebro do ser humano pode ser expressa em qualquer ambiente. Por exemplo, desenvolver métodos de sobrevivência, ou localizar-se espacialmente em uma floresta fechada para depois voltar para a cabana, deve requerer complexos mecanismos cerebrais de memória.

Dados arqueológicos apontam que o ser humano tem 1.5 milhão de anos (a partir do homo habilis), mas o seu cérebro foi evoluindo até 100 mil anos atrás, e depois estacionou. Desta forma, supomos que o nosso cérebro, e por extensão, nossa memória, não se modificaram ao longo do período de 100 mil anos.

Por outro lado, não podemos dizer o mesmo das alterações cerebrais individuais (e não as genéticas, populacionais) provocadas pela interação com o ambiente, como a “plasticidade cerebral”, ou seja, a habilidade dos neurônios se modificarem, formando novos processos e conexões sinápticas quando aprendemos e relembramos. É conhecido que estas conexões neuronais estão aumentadas em indivíduos que vivem em ambientes enriquecidos de aprendizagem e que "exercitam" mais o seu cérebro. Mesmo neste aspecto, o homem “pós-invenção da escrita” também exercita enormemente o seu cérebro, pois o simples ato de ler requer o recrutamento de vários processos cognitivos, entre eles o de várias memórias, por exemplo, as experiências passadas para associar, distinguir, interpretar o que está sendo lido. Você, por exemplo, imagine quantas memórias está recuperando ao ler esta simples mensagem: desde um simples verbo, palavra ou conceito aprendido quando ainda criança, até alguns conhecimentos científicos aprendidos no ginásio ou mesmo em um passado bem recente. Sem as memórias, você não compreenderia absolutamente nada do conteúdo deste pequeno texto.

Além dos fatores individuais, há também os fatores genéticos e adaptativos a serem considerados. Neste caso, talvez tivesse que haver, por exemplo, uma seleção natural ao longo de milhares de anos, de indivíduos que usaram sua
memória de determinada forma; estes teriam que copular com indivíduos de memória semelhante e reproduzirem filhos que  herdariam genes para aquela conformação do sistema de memória; estes também teriam que copular com parceiros de memórias semelhantes, que passariam aos seus filhos, e assim por diante.
 
 


Center for Biomedical Informatics
State University of Campinas, Brazil

Silvia Helena Cardoso, PhD

Copyright 1997 State University of Campinas