Civilização e Loucura

Paulo Dalgalarrondo, MD, PhD

Em finlandez

A idéia que insanidade é rara entre os povos primitivos e que ela tende a aumentar em proporção ao processo civilizatório surgiu pela primeira vez no século XIX. Psiquiatras importantes daquela época defenderam a idéia que existiria uma íntima relação entre civilização e doença mental. A idéia do "bom selvagem", proposta pelo filósofo e reformador francês Russeau, ainda era forte.

Por exemplo, o naturalista Alexandre von Humboldt, em sua viagem às regiões tropicais da América, teria ficado surpreso com a ausência de doentes mentais entre os selvagens. Em outro exemplo, o médico encarregado da remoção dos índios Cherokee às reservas índias, tendo observado mais de 20 mil índios, afirmou nunca tinha visto ou mesmo ouvido falar de um caso de insanidade entre os Cherokees. Acreditava-se também que a insanidade era rara entre os africanos e chineses e que as pessoas nativas no Pacífico Sul também eram isentas de insanidade. O Capitão Wilkes, o comandante da "Expedição Exploradora dos Estados Unidos", relatou que durante todas as suas viagens aos mares do sul jamais havia visto qualquer caso de insanidade entre as pessoas daquela região.

Doença Mental em Nativos

Contudo, a idéia de ausência completa de doença mental entre os primitivos não seria mantida. Ao longo do século XIX e paralelamente à expansão do colonialismo inglês, francês e alemão, os alienistas das colônias começaram a perceber melhor os contrastes entre pacientes vistos lá e aqueles visto na Europa. Eles começaram a descobrir doenças mentais que eram restritas a povos primitivas, tais como o amok e o latah, entre os nativos de Java; koro, entre os chineses em Java; o myriath, na Sibéria, piblokto entre os esquimós, etc. Assim, nasceu uma nova abordagem, a assim chamada "psiquiatria cultural do exótico", a qual evoluiu até o presente conceito de síndrome delimitada pela cultura ( "culture-delimited syndrome").

Na mesma época, começava a crescer também o interesse de alguns psiquiatras europeus em demonstrar que as doenças clássicas descritas por eles, tais como a esquizofrenia, eram universais e não limitadas geograficamente à Europa. Pela primeira vez, o pensamento psiquiátrico buscava fora do seu berço de nascimento uma prova para o valor universal de suas categorias de doença mental. O grande psiquiatra Emil Kraepelin foi um dos primeiros a fazer extensas viagens ao Oriente e examinar pacientes psicóticos entre povos primitivos, tais como na ilha de Java.

Finalmente, durante o século da expansão dos grandes impérios, passou a predominar a idéia que a civilização tinha um efeito nocivo sobre a saúde mental do assim chamado "primitivo". A introdução do álcool nas culturas nativas foi considerado como um dos principais elementos na destruição de tribos indígenas americanas.

E por que?

Racismo e o Cérebro do Nativo

Desde a metade do século XIX, as teorias casuais sobre a doença mental oscilavam entre as visões orgânicas e as psicopatológicas. As idéias orgânicas predominavam, marcadas principalmente, pela teoria da degeneração do cérebro. Em consonância com a "mitologia do cérebro" da época, chegou-se à idéia de que o cérebro do nativo era mais primitivo que o do europeu e que ele se assemelhava ao cérebro de uma criança, ou, ainda, que eles manifestavam um inferioridade cerebral inata, inerente à raça, o que os tornava iguais aos mais inferiores degenerados da Europa.

Além da idéia de que pessoas nativas nas colônias européias tinham cérebros mais primitivos que os europeus, a tese que negros tinham um cérebro anatomicamente mais primitivo que os brancos cresceu em torno do século. Pensava-se que os negros tinham o cérebro com lobos frontais diminuídos os quais poderia explicar o fato de ter "faculdades mentais inferiores como cheiro, habilidade manual, sensação corporal e melodia", enquanto que os brancos, por outro lado, tinham desenvolvido faculdades mentais mais elevadas, como o auto-controle, ambição, senso ético e estético e razão".

O crescimento da associação entre a psiquiatria orgânica e o racismo no colonialismo europeu e nas ideologias discriminatórias das classes americanas dominantes transformou o selvagem e o negro, de donos de personalidade simples e exóticas, em portadores de um cérebro primitivo e grosseiro. Surpreendentemente, este viés no pensamento psiquiátrico, mesmo sendo grosseiramente racista e etnocêntrico, foi defendido até poucas décadas atrás, principalmente nas idéias de psiquiatras trabalhando nas colônias inglesas e francesas da África.

A idéias de que os indígenas nativos eram especialmente vulneráveis aos efeitos da civilização - dado que o seu cérebro mais primitivo não resistiria aos efeitos prejudiciais de um tipo mais desenvolvido de sociedade - predominou entre os alienistas norte e sul americanos. Nos Estados Unidos, muitos autores tentaram mostrar que o suposto aumento da doença mental entre negros após a abolição da escravidão tinha a ver com a falta de preparação da vida dos afroamericanos em uma sociedade "livre e civilizada". Mais uma vez, não era a dinâmica histórica ou social que produzia relações desiguais entre homens e certos grupos sociais jogados em condições de vida sub-humanas, mas sim a "fraqueza cerebral constitucional" destes grupos que os tornava presa fácil da a miséria e da insanidade.

O neurologista e psiquiatra Harry R. Hummer, o superintendente do único sanatório exclusivo para índios americanos nos EUA, em Dakota do Sul, fez o primeiro estudo sistemático sobre doença mental entre índios americanos. Para ele, ainda que, geralmente os sintomas e tipos de distúrbios eram similares entre índios e brancos, entre os índios havia casos predominantes de descontrole, com extrema agressividade e homicídios.

Deste modo, gradualmente, o pensamento psiquiátrico cultural consolidou a idéia de que cada vez que o nativo é confrontado com sofrimento, perda e frustração, sua tendência imediata é reagir de uma forma infantil, histérica e impulsiva, ao invés de desenvolver sintomas depressivos mais profundos. Talvez a idéia predominante na psicopatologia cultural desde a virada do século seja que os sintomas dos nativos são menos diferenciados e elaborados, mais rudes, confusos, desorganizados e pobres em conteúdo.

Curiosamente, os autores em geral não fazem qualquer referência às suas limitações linguísticas e à dificuldade de acesso aos valores e costumes de pessoas estudadas. A maioria dos pesquisadores neste período quase sempre não dominava a linguagem dos pacientes estudados e sequer conhecia suficientemente seus valores culturais e símbolos. A psiquiatria do colonizador foi baseada em ver, e não ouvir, produzindo então, uma psicopatologia do comportamento externo e não do discurso do paciente e de seu sofrimento subjetivo. Além disto, mesmo sabendo que, devido às precárias condições de atenção psiquiátrica e escassez de leitos e médicos, somente os casos mais sérios, predominantemente a agressividade, recebiam cuidados psiquiátricos. O alienista branco se restringia às primeiras impressões aparentes, e, assim, generalizava a idéia que a insanidade em nativos era fundamentalmente mais impulsiva e agressiva do que nos cristãos brancos.

Conclusão

Não é absurdo pensar que o "louco selvagem" funcionaria como uma mancha de Rorschach na qual o imaginário ocidental "projeta" sem pudor as suas fantasias, seus temores, seu racismo e preconceitos etnocêntricos. Os inícios da etnopsiquiatria revelam, frequentemente, apenas uma sombra deformada do homem exótico e seu adoecimento psíquico. A lente que o branco civilizado utiliza deforma profundamente seu objeto, tanto por necessidades e interesses políticos e ideológicos, como pela pregnância de noções étnicas profundamente arraigadas no pensamento ocidental.


Paulo Dalgalarrondo, MD, PhD. Professor de Psiquiatria da Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP. Mestrado sobre unidade de internação psiquiátrica em hospitais gerais (1990) pela Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP, doutorado sobre neuroimagem e neuropsicologia das psicoses funcionais (1990) pela Universidade de Heidelberg, no ZISG-Mannheim, Alemanha. Atualmente realiza pesquisas e orienta teses nas áreas de psiquiatria cultural, psicopatologia e neuropsiquiatria. Autor de Civilização e Loucura. Uma Introdução à História da Etnopsiquiatria, Editora Lemos, 1997. (Campinas, Brasil)