Interdisciplinariedade e o Estudo da Mente

Renato M.E. Sabbatini, PhD e Silvia Helena Cardoso, PhD

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O estudo da mente e suas bases biológicas é um dos maiores esforços científicos de todos os tempos. Ele é a chave para o entendimento definitivo da natureza dos seres humanos.

Entretanto, a fina complexidade do sistema nervoso e as diversas barreiras metodológicas que existem neste campo para o estudo objetivo de sua estrutura e função requerem uma colaboração extensa entre muitas disciplinas científicas. Biologia molecular e celular, biologia do desenvolvimento, genética, bioquímica, biofísica, farmacologia, eletrônica, tecnologia de informação, engenharia biomédica, matemática, estatística, física, ciências cognitivas, psicologia, linguística e muitas outras, convergem e se interconectam naquela que provavelmente é a mais interdisciplinar de todas as ciências.

A explicação disto é simples: a neurociência é essencialmente integrativa, porque o seu objeto de estudo (o cérebro) é um órgão integrativo !

Mas o que é disciplina, e o que é interdisciplinariedade? Qual é o seu valor hoje e como alcançá-lo? Quais são as diferenças entre interdisciplinariedade e multidisciplinariedade? À medida em que a neurociência objetiva realizar o maior desafio de todas as investigações científicas, este entendimento é importante para muitas coisas.

O Que É Interdisciplinariedade?

De acordo com Moti Nissani (1), uma disciplina é "algo comparativamente auto-contido e isolado do domínio da experiência humana, o qual possui sua própria comunidade de especialistas com componentes distintos tais como metas, conceitos, habilidades, fatos, habilidades implícitas, e metodologias".

Interdisciplinariedade, por outro lado, é "a união dos componentes distintos de duas ou mais disciplinas" na pesquisa ou educação, conduzindo a novos conhecimentos que não seriam possíveis se não fosse esta integração.

A multidisciplinariedade ocorre quando as disciplinas trabalham lado a lado em distintos aspectos de um único problema.A interdisciplinariedade ocorre quando as disciplinas se integram e colaboram entre si.

Por exemplo, a membrana de um neurônio pode ser estudada separadamente pela química ou física como uma fase complexa de moléculas orgânicas com propriedades elétricas distintas, abstraindo inteiramente o fato de que ela é parte de uma célula viva e o resultado de uma evolução orgânica. Isto é pesquisa multidisciplinar. Entretanto, quando a estrutura da membrana e suas propriedades e funções são estudadas usando uma abordagem combinando as contribuições de várias disciplinas trabalhando juntas, nós temos a interdisciplinariedade. Por exemplo, em um projeto de pesquisa descrito como "a influência de um sistema segundo-mensageiro sobre a conformação molecular de canais iônicos e suas consequências na integração de informação de entrada  pelos campos dendríticos de neurônios geneticamente defeituosos na área visual, usando imagens eletrônicas e microfabricação de eletrodos" nós notamos a colaboração de disciplinas de bioquímica, biofísica, neuroanatomia, biologia celular, genética, eletrofisiologia, eletrônica, química, engenharia, entre outras. O resultado desta pesquisa aparentemente importante não seria possível sem esta integração.

 O grau de interdisciplinariedade pode variar em muitos domínios, é claro. Nissani propõe caracterizar o grau de integração interdisciplinar em quatro critérios:
 

A interdisciplinaritiedade também muda e evolui.. Aquilo que foi interdisciplinariedade no passado, tais como a integração entre biologia e física, tornou-se uma disciplina (por ex., biofísica), com o seu próprio conjunto de experimentos, congressos, revistas, sociedades profissionais, comitês, cursos de graduação, métodos e até mesmo profissões estabelecidas (na Alemanha e Canadá, por exemplo, a informática médica é agora um curso universitário em nível de graduação).

A Importância da Interdisciplinariedade

Leonardo da Vinci representou um ideal que não se pode mais alcançar: o "homem da Renascimento", que era capaz de dominar simultâneamente muitas formas do conhecimento. Leonardo foi um notável pintor, escritor, filósofo e cosmólogo. A explosão do conhecimento, que começou no Iluminismo e nas Era Industrial, e que continua com uma velocidade espantosa em nossa atual Era da Informação (a Biblioteca Nacional de Medicina estima que o conhecimento médico publicado está dobrando em tamanho a cada quatro anos!), é impossível a um único cientista abranger qualquer coisa que seja maior que o seu minúsculo campo de especialidade.

A consequência, segundo Leland Miles (2) é que "à medida que o conhecimento explode e se fragmenta, torna-se impossível para um indivíduo compreender os diversos fragmentos. Para evitar se afogar neste crescente oceano de conhecimento, cada um de nós tipicamente se agarra em apenas um ou dois 'objetos flutuantes' como se nossa vida dependesse deles,  impedindo-nos assim, de olhar a nossa volta. Tentar enxergar para mais além desses poucos fragmentos, significa ser subjugado pelo tamanho deste oceano. Para evitar isso, preferimos permanecer ignorantes de tudo, menos de nossos próprio domínios".

Portanto,  poderá ocorrer um bloqueio de muitas pesquisas novas, a menos que aprendamos a cooperar através da pesquisa e educação interdisciplinares. O maior obstáculo para isto é a maneira pela qual as universidades são organizadas. O modelo departamental, onde as disciplinas são isoladas, ensinadas e pesquisadas separadamente, com muito pouco em comum, está condenado, porque isto atrapalha a interação e a integração. Os estudantes não aprendem como trabalhar em equipes interdisciplinares, como pensar de maneira interdisciplinar; deste modo eles simplesmente passarão a repetir as limitações dos seus próprios professores.

O desdobramento da interdisciplinariedade exigirá uma verdadeira revolução, uma reforma abrangente em nossos laboratórios e escolas. A neurociência tem sido exemplar em mostrar os novos caminhos: em todo o mundo, muitos centros de pesquisa e programas educacionais interdisciplinares e multidisciplinares têm sido fundados com sucesso.
 

A Profissão Interdisciplinar

Com o objetivo de viabilizar programas interdisciplinares, um novo tipo de profissional está sendo necessário: um que seja capaz de trabalhar facilmente com especialistas de muitas das disciplinas que estão sendo integradas e  interagir simultaneamente com vários deles. Alguém na equipe deve ter a visão abrangente do projeto, e como e quando as disciplinas vão interagir.

Nós podemos entender como deve ser este profissional, examinando o seguinte modelo conceitual:
 
 

Neurofisiologia

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..


 

O Pesquisador InterdisciplinardeNeuroinformática
 

 

Informática

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Figura: O pesquisador Interdisciplinar: Está "Em Cima do Muro", ou seja, não se aprofunda nas duas especialidades envolvidas, mas consegue manter-se em contato com ambas e integrar os conhecimentos de cada uma.

Podemos imaginar que dois pequisadores que trabalham em campos separados
e não similares do conhecimento são incapazes de olhar para além de suas disciplinas, "para o outro lado do muro", digamos assim.

O pesquisador interdisciplinar, contudo, "fica em cima do muro" e é capaz de enxergar ambos os lados simultaneamente. Ele não tem uma visão em profundidade dos domínios disciplinares, mas tem um razoável domínio sobre ambos; e é justamente isto é que é necessário: que ele coordene e integre os membros da equipe disciplinar.

Por exemplo: suponhamos que queremos entender como uma população de neurônios codifica informação sensorial. Para fazer isto, nós devemos contar com um neurofisiologista celular, um matemático e um engenheiro de software, de forma que possamos implementar e usar uma metodologia apropriada usando registro celular isolado, aquisição de dados computadorizada e análise matemática do comportamento do neurônio.

A existência de um líder de equipe com conhecimento e experiência em todas estas áreas facilitará tremendamente o desenvolvimento de tal projeto.
 

Conclusões

É fácil ver que o avanço das neurociências dependerá de uma abordagem interdisciplinar nos próximos anos. Isto coloca um grande desafio para a comunidade científica, particularmente na forma em que os neurocientistas são treinados. Geralmente os biólogos não gostam das ciências exatas e são ressabiados quanto ao uso dos métodos de engenharia e matemática. Seu perfil profissional é ainda muito "leve" do ponto de vista científico e além disso eles são carentes dos conhecimentos e interações considerados necessários para a formação de um profissional moderno e eficiente. Isto deve ser mudado, e um novo tipo de neurobiologia dever emergir. Maiores recursos também devem ser gastos com o objetivo de formar osnovos "profissionais interdisciplinares" que descrevemos acima.

Uma área em particular aparece como desafiadora o suficiente para requerer seu próprio tipo de esforço interdisciplinar e profissionais dedicados a isso: como iremos coletar, sistematizar e disseminar uma ampla quantidade de informação científica sobre o cérebro e a mente. No último editorial de "Brain & Mind" (3) nós mostramos como a informática e as redes de computadores são agora essenciais para este esforço. O Projeto Cérebro Humano é um dos mais impressionantes programas de pesquisa interdisciplinar que foram propostos para enfrentar este desafio. Uma forte colaboração entre informática e neurociência tem sido um componente vital para os seus esforços de mapeamento cerebral (4).

Referências

  1. Nissani, Moti. "Fruits, salads, and smoothies: a working definition of interdisciplinarity." Journal of Educational Thought 26: 2, 1995.
  2. Miles, Leland. "Renaissance and academe: the elusiveness of the Da Vinci ideal". Phi Kappa Phi, 1989.<-font>
  3. Cardoso, Silvia Helena. The impact of Internet on the neurosciences". Brain & Mind Magazine, 1(5), 1998. URL: http://www.epub.org.br/cm/n05/editori5_i.htm
  4. Pechura, Constance M. and Martin, Joseph B. (Editors). Mapping the Brain and its Functions. National Academy Press, Washington, DC, 1991. URL: http://www.nap.edu/bookstore/isbn/0309044979.html

Os Autores

 

Silvia Helena Cardoso, PhD. Psicobióloga, mestre e doutora em Ciências pela Universidade de São Paulo e pós-doutorado pela Universidade da Califórnia em Los Angeles. Pesquisadora associada do Núcleo de Informática Biomédica, UNICAMP, Campinas, Brasil. Diretora e Editora-chefe da revista Cérebro & Mente e editora associada da Intermedic, revista em Internet e Medicina.
 
Renato M.E. Sabbatini, PhD. neurocientista e especialista em Informática Biomédica, doutor pela Universidade de São Paulo e pós-doutorado no Instituto de Psiquiatria Max Planck em Munique, na Alemanha. Atualmente, é diretor do Núcleo de Informática Bimédica da Unicamp e professor de Informática Médica da Faculdade de Medicina da Universidade Estadual de Campinas, (Campinas, Brasil). Email: sabbatin@nib.unicamp.br

 
 


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