Como  Funcionam as Células Nervosas

3. Movimento dos íons: Carga Elétrica

Silvia Helena Cardoso, PhD  e Renato M. E. Sabbatini, PhD

Animações Gráficas: André Malavazzi



As células do corpo humano caracterizam-se por apresentar em  suas membranas uma diferença de potencial elétrico que é chamado de "polarização elétrica da membrana".  Há uma diferença negativa do compartimento intracelular em relação ao compartimento extracelular, ou seja, o interior da membrana apresenta uma carga elétrica negativa em relação ao seu exterior. O valor dessa diferença é conhecido como potencial de repouso da membrana.

Como surge esse potencial elétrico?

Inicialmente, devemos saber que nas células nervosas excitáveis (os neurônios) existem concentrações diferentes de íons Na+ (sódio), Cl- (cloro) e potássio (K+) nos compartimentos intra e extracelular.

Em condições estáveis (de equilíbrio), os íons Cl- e Na+ existem em maior concentração do lado de fora das células do que do lado de dentro. O potássio existe em maior concentração do lado de dentro do que do lado de fora. Além disso, existem ânions (íons negativos) orgânicos em maior concentração do lado de dentro da célula do que do lado de fora.

Como surgem essas diferenças de concentração?

Uma das explicações é que a membrana do neurônio não deixa passar os íons com a mesma velocidade, ou seja, dizemos que o grau de permeabilidade é diferente para cada íon. O potássio tem uma permeabilidade muito alta, cerca de 25 vezes maior do que para o sódio. O cloro tem uma permeabilidade menor que a do potássio, mas maior do que a do sódio. E, finalmente, a permeabilidade dos ânions orgânicos é praticamente nula, ou seja, eles não atravessam a membrana.

Para entender como diferentes permeabilidades geram diferentes concentrações, vamos repetir aqui a experiência que vimos na seção anterior: um béquer, com uma separação constituída por uma membrana orgânica, com ambos os compartimentos contendo água e de um dos lados uma solução iônica com concentrações de sódio (Na+) e potássio (K+) em concentrações iguais no compartimento à esquerda. No diagrama abaixo, o K+ é representado por bolinhas de cor amarela, e o Na+ por bolinhas de cor verde. As concentrações de cada lado são indicados pelas barras verticais da mesma cor.

 

Só que agora, ao invés de utilizar uma membrana semipermeável (que permite a difusão livre de todos os íons com a mesmo grau de permeabilidade), utilizaremos uma membrana com permeabilidade seletiva. Em outras palavras, esta membrana apresenta uma permeabilidade maior para um determinado tipo de íon do que para outro, exatamente como na membrana celular.

Quando isso acontece, o íon com uma maior permeabilidade vai fluir mais rapidamente para o outro lado, seguindo o seu gradiente químico, do que um íon com menor permeabilidade. Em nosso exemplo, o íon com maior permeabilidade é o potássio (K+) e o íon com menor permeabilidade é o sódio (Na+). Dessa maneira, passado um curto período de tempo, haverá uma concentração mais alta de K+ do que de Na+ no lado direito da membrana e, no lado esquerdo o inverso, ou seja, uma concentração mais alta de Na+ do que K+.

Á medida em que os íons se deslocam através da membrana, surge agora uma carga elétrica entre os dois lados da membrana (mostrado pelas agulhinhas dos voltímetros). Para o íon potássio, o lado direito vai ficando mais positivo em relação ao lado esquerdo. Com isso, surge progressivamente um gradiente elétrico. Então, dado que o íon K+ é positivo e é repelido por cargas positivas, após um determinado tempo ele pára de seguir seu gradiente químico porque a carga positiva, que ele contribue a gerar no lado direito, vai se opor ao gradiente químico, devido à repulsão elétrica.  Ocorre um
equilíbrio eletroquímico, ou seja, para cada diferença de concentração quimica existe uma diferença de potencial que a equilibra.

Em outras palavras, ocorrerá um equilíbrio entre as forças químicas e elétricas que geram o movimento do íons através da membrana seletivamente permeável e as concentrações se estabilizam. Como resultado, a polarização também pára de mudar, e se equilibra.

Walther Nernst, um cientista alemão, descreveu esse fenômeno na forma de uma lei, que leva seu nome. Ela expressa, em termos matemáticos, que a concentração química dos íons e suas cargas elétricas estão em equilíbrio para um íon determinado, e que um potencial em equilíbrio é proporcional ao logaritmo das concentrações de cada lado da membrana.

Para cada íon, temos um potencial de Nernst. Para a membrana do neurônio, o potencial de Nernst para o potássio é de -75 milivolts (mV). Como o potencial de repouso da membrana é de cerca -60 mV, concluimos que não é somente o K+ que o determina: outros íons devem estar envolvidos. Estes íons são o Na+ (que tem um potencial de equilíbrio de +55 mV, ou seja, ele é o inverso do potássio: os gradientes químico e elétrico estão na mesma direção: de fora para dentro da célula), e o Cl- (que tem um potencial de equilíbrio de -60 mV). Estes íons são chamados de "os três grandes", pois são os mais importantes.

O potencial de repouso da membrana é portanto, a resultante dos potenciais de Nernst de todos os íons envolvidos. A essa lei denominamos de Nernst-Goldman, devido ao nome do cientista que ajudou à modificá-la. Ela determina teoricamente, com grande precisão o resultado final medido experimentalmente. O íon que tem a maior velocidade de difusão através da membrana (no caso, o potássio), é o que mais contribue para o potencial final.

Como o potencial de membrana é mantido?

Embora a lei de Nernst garanta um estado de equilíbrio eletroquímico para cada um dos "três grandes", na realidade esse é um equilibrio dinâmico, ou seja, estão sempre passando íons de um lado para o outro da membrana. A longo prazo, portanto, tenderia a ocorrer o que acontece com qualquer membrana semipermeável: as concentrações de íons dos dois lados se igualariam, e também os potenciais, levando a uma diferença zero de potencial entre o lado interno e o lado externo.

Duas coisas garantem a manutenção de um estado polarizado e com concentrações diferentes de íons, enquanto a célula continuar viva.

A primeira é a existência daqueles íons negativos inorgânicos em maior preponderância do lado de dentro da célula. Eles tem um gradiente quimico de dentro para fora grande, mas a permeabilidade para eles é zero. Então, segundo a lei de Nernst, eles tendem a gerar uma polaridade, pois os íons positivos, como o potássio, tendem a ficar dentro da célula. Esse tipo de equilíbrio foi descoberto por um cientista chamado Donnan.

A segunda é a bomba de sódio-potássio, da qual falamos na sessão anterior, que pega todos os potássios que saem e jogam para dentro, e todos os sódios que entram e jogam para fora. Para cada bombeada dessas, ela gasta uma molécula energética de ATP.

Então, explicando com mais detalhes agora, o potencial de membrana é mantido da seguinte maneira:

1) O íon K+ está em maior concentração dentro do que fora da célula. Como ele se difunde com alta velocidade, agora ele passa a sair da célula, seguindo seu gradiente químico. Como a célula é mais negativa dentro do que fora, então o gradiente elétrico é oposto ao químico, e tende a "brecar" mais saída do potássio. Os ânions orgânicos dentro da célula também tendem a limitar essa difusão. Com o tempo, no entanto, o potássio acabaria tendo a mesma concentração dentro e fora, mas a bomba de potássio agarra cada potássio que sai e joga para dentro;

2) O íon Na+ está maior concentração fora do que dentro da célula. Ele se difunde a uma velocidade muito baixa, de fora para dentro, seguindo seu gradiente químico, e também seu gradiente elétrico. Com o tempo, ele acabaria tendo a mesma concentração dentro e fora, mas a bomba de sódio agarra cada sódio que entra e joga para fora;

3) O ion Cl- está também em maior concentração fora do que dentro. Portanto ele se difunde, a uma velocidade menor do que a do potássio, de fora para dentro, seguindo seu gradiente químico. O gradiente elétrico, no entanto, é oposto ao quimico, pois é mais negativo dentro do que fora. Assim, ele se equilibra dinâmicamente, sem que haja a necessidade de uma bomba ativa de cloro!

Além disso, os ions potássio, ao sairem da célula, geram uma camada fina de íons positivos do lado de fora, junto à membrana. Isso também contribui para que a polaridade seja então positiva em relação ao interior da célula.

E assim as coisas entram e ficariam em equilíbrio perpétuo, se não fosse por duas coisas: o potencial de ação (que inverte as polaridades e as concentrações habituais, mas muito transitoriamente, apenas por alguns microssegundos antes da bomba de sódio-potássio botar tudo em ordem novamente), e o aporte constante de energia metabólica, para fazer funcionar a bomba.

O mais interessante é que a quantidade de íons que precisam passar de um lado para o outro da célula para produzir a diferença de potencial é ínfima, muito pequena, em relação às concentrações absolutas.

 

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Copyright 1999 Universidade Estadual de Campinas
Uma iniciativa do Núcleo de Informática Biomédica
Publicado em 25.Julho.1999
Modificado em 22 de Junho de 2003.
URL: http://www.epub.org.br/cm/n09/fundamentos/transmissao/electrical.htm