A Evolução da Inteligência

Parte 6: Fabricação de Ferramentas, Caça e Guerra

Renato M.E. Sabbatini, PhD
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Juntamente com a linguagem, a capacidade de inventar e fazer novas ferramentas é considerada uma das características mais distintas do gênero Homo. Nenhum animal vivo têm essas habilidades e, provavelmente, os hominídeos extintos tinha-nas apenas em um estágio primitivo e inicial, estabelecendo uma grande diferença com outros primatas não-humanos. 

Portanto, o surgimento de uma tecnologia para a fabricação de ferramentas de pedra durante a evolução dos hominídeos representou uma mudança radical do comportamento social em relação a dos macacos, e é a primeira evidência documentada de uma tradição cultural com valor para a sobrevivência, ou seja, com base no aprendizado. Os seres humanos usaram pela primeira vez ferramentas entre 3 a 4 milhões de anos atrás. Elas provavelmente eram feitas de madeira ou de osso, uma vez que os chimpanzés são capazes de modificar ramos e galhos de madeira para diversos fins, como para capturar cupins para comer ou quebrar nozes duras e até de ensinar essas tecnologias para os outros, mas não há nenhuma maneira de saber isso com certeza, porque nunca foram encontrados restos fósseis claros destes tipos de ferramentas. 

Ferramentas de pedra, no entanto, foram perfeitamente preservadas e são muito fáceis de distinguir das formas naturais. Não há nenhuma evidência sólida de que os australopitecos fossem capazes de fabricar ferramentas, mas certamente eles foram capazes de selecionar e usar objetos naturais para este fim. O aparecimento do Homo habilis, no entanto, fez a diferença, e desse fato decorre o nome dados a eles. Os primeiros seres do gênero Homo foram capazes de criar e elaborar ferramentas de pedra pela primeira vez cerca de 2,5 milhões de anos atrás na África, dando início ao que se conhece como Idade da Pedra, a qual progrediu ao longo do tempo através de três eras distintas: 

Durante o Paleolítico, que é subdividido em períodos Inferior, Médio e Superior, os seres humanos aprenderam a lascar sistematicamente certos tipos de pedras para vários fins, usando uma técnica conhecida como olduwana, assim chamada por causa da Garganta Olduwai, na atual Tanzânia, o local onde muitos fósseis de hominídeos e ferramentas de pedra foram encontrados. Estas ferramentas eram feitas simplesmente batendo-se duas pedras umas contra a outra, de modo que, eventualmente, pedras menores, com arestas cortantes, fossem obtidas. Isso é chamado de "descamação" (flaking, em inglês), e um das melhores pedras para fazê-lo é um tipo de rocha cristalina chamada sílex. Outra rocha muito usada, um mineral vítreo negro de origem vulcânica, chamado obsidiana, é excelente para fazer facas extremamente afiadas
 
 
Ferramenteas de sílex do período Acheuliano (Paleolítico Médio)
Ferramentas de pedra do período Olduwano (Paleolítico Inferior)

Os primeiros seres humanos usavam essas ferramentas para matar animais, quebrar seus ossos para extrair o tutano, fatiar carne, raspar couro, cortar ramos e aguçar varas de madeira. Acesso a fontes ricas em gordura e proteína escondidas na medula óssea, cérebro e músculos de animais mortos ou recém-mortos foi muito importante para a evolução dos homens, porque lhes forneceu energia suficiente para sustentar um cérebro maior, bem como para os caçadores serem capazes de correr por mais tempo atrás de presas comestíveis. 

Os hominídeos e os primeiros humanos viviam provavelmente de uma dieta mista obtida pela procura e coleta de plantas, larvas, mariscos e outros pequenos animais comestíveis (como acontece também com os primatas não-humanos), restos de carcaças deixadas por outros predadores, pesca e caça. Estas quatro atividades são progressivamente mais eficazes em termos de retorno calórico do investimento de tempo e esforço, e a "descoberta" de ferramentas para obter fontes ricas de calorias, como o cérebro e a medula óssea, e para matar presas, foi o principal fator de amplificação que "explodiu" a evolução humana ao longo de algumas centenas de milhares de anos. Este fator nutricional da evolução da inteligência humana, através do crescimento do cérebro, é considerado muito importante, pois ele consome cerca de 25% da energia metabólica basal do corpo, embora pese menos do que o fígado: sem fontes ricas em energia, como as gorduras animais (4 kcal por grama), essa evolução não teria sido possível.

Mais tarde (1,5 milhões de anos atrás), uma técnica de elaboração de ferramentas de pedra conhecida como acheuliana (assim chamada por ter sido descoberta em um local francês chamado Saint-Acheul) foi desenvolvida na África no Paleolítico Inferior, e reinou por um milhão de anos sem modificações. Ela foi levada pelo Homo erectus para a Ásia. Ferramentas acheulianas eram bem mais refinadas, maiores e mais simétricas, com características pontas de flechas e lanças em forma de lágrimas, e com bordas cortantes dos dois lados da pedra, enquanto que as ferramentas olduwanas eram bem mais grosseiras, menores, de formato irregular e com o corte de um lado só. Os ferramenteiros acheulianos tinha a capacidade de sobrepor mentalmente uma forma pré-concebida sobre uma pedra inacabada, o que exige uma forma mais sofisticada de inteligência. 

O Homo sapiens neanderthalensis também evoluiu a tecnologia de ferramentas de pedra lascada, no Paleolítico Médio e Superior, mas elas eram muito menos sofisticadas e menos variadas do que os dos primeiros seres humanos modernos, os Cro-Magnons. A forma mais avançada e inovadora dos utensílios de pedra apareceu no Neolítico, cerca de 40.000 anos atrás, e é totalmente característica das habilidades superiores e inteligência do Homo sapiens sapiens. Certamente exigiram grande habilidade e conhecimento e resultaram em lâminas mais longas e mais finas, que tinham uma área de corte10 vezes maior do que aquelas do Médio Paleolítico. Na verdade, elas ainda estão em uso hoje por muitas culturas em todo o mundo, tais como tribos indígenas sul-americanas intocadas. Para fabricá-las usa-se uma técnica de precisão de martelar indiretamente a pedra, desenvolvida por seres humanos que foram capazes de fabricar entre 60 a 70 tipos diferentes de ferramentas diferentes para todos os tipos de tarefas, que vão desde corte e costura de vestimentas (outra provável invenção do paleolítico superior), à raspar, serrar, martelar, escavar, etc "Usinas” de ferramenta de pedras surpreendentemente grandes foram encontrados na França e outras partes da Europa, com centenas de milhares de ferramentas em vários estágios de conclusão, linhas de produção, toneladas de detritos e resíduos de fabricação de ferramentas e matérias-primas trazidas de lugares distantes. Houve também a primeira evidência de comércio de ferramentas de pedra entre as tribos, provavelmente por meio de escambo.

As artes da caça e guerra também foram consideravelmente avançadas por meio de todos os tipos de implementos e armas, como anzóis, estilingues, zarabatanas, arcos e flechas, machados, maças, lanças, adagas, etc.  Desta forma, a capacidade do homem de planejamento, inteligência e astúcia co-evoluíram com sua capacidade de matar os inimigos e tribos rivais. As primeiras armas eram de alcance muito curto, por serem utizadas diretamente com as mãos. Sua eficácia e letalidade foram gradativamente aumentadas com cabos de madeira e osso (para prolongar a ação do braço), até chegarem a armas de longo alcance, através do arremesso, como lanças e flechas. No Neolítico surgiram provavelmente os primeiros artefatos de defesa, como escudos, armaduras e capacetes.

A caça é a atividade humana por excelência entre os primatas, e só foi possível em larga escala e como forma de sustento, através da invenção das armas de caça. Caça existe e é instintiva entre os chimpanzés, que buscam por presas pequenas, como filhotes de macacos de outras espécies e de antílopes, agindo em bandos grandes, com até 10 indivíduos. Eles perseguem as presas com grande astúcia e velocidade, e as matam por espancamento contra árvores e por mordidas, mas nunca foram observados caçando com ferramentas, como pedras ou galhos, embora usem comumente esses objetos para ameaçarem-se uns aos outros. O uso de ferramentas para matar rápida e eficazmente presas grandes e em grande número é exclusivamente humano. Há evidências de que os seres humanos do Neolítico foram capazes de matar mastodontes, o maior mamífero terrestre que já viveu. Este era um feito enorme e muito perigoso em si mesmo, como é bem mostrado numa exposição no Museu Antropológico do México, e exigiam habilidades incríveis de planejamento,  tecnologia e execução, tais como a coordenação dos caçadores, etc .

O Homo erectus foi, provavelmente, a primeira espécie humana a caçar cooperativamente usando armas. Em alguns sítios arqueológicos foi encontrado um grande número de ossos de animais, armas e ferramentas de pedra, ao lado de restos de Homo erectus. Em alguns locais foram achados restos de mais de 50 elefantes, uma presa muito grande. Outro fato importante é que eles foram os primeiros a descobrir o uso do fogo, o que tornou possível para eles habitar regiões de clima muito frio, como o norte da China, e para preservar a carne para levar longas viagens através dos desertos e montanhas. 

Outra atividade importante de conseguir gordura e proteina animal de alta qualidade para a alimentação, e que foi utilizada desde cedo pelos primeiros humanos, foi a pesca, tanto em água doce quanto no mar. Para essa atividade foram desenvolvidas ferramentas especiais, também, como lanças curtas com pontas de pedra muito finas e aguçadas. A enorme abundância de peixes, crustáceos e moluscos, constatada até hoje em paraísos selvagens, como na Amazônia, tornava bastante fácil e descomplicada a sobrevivência de grupos humanos, que puderam crescer de um tamanho de 20 a 30 individuos a cerca de 150 pessoas. Existem amplas evidências, atualmente, de que Homo sapiens primitivos viveram extensivamente do consumo de mariscos e outros frutos do mar, à beira do oceano na África do Sul, durante longos períodos de seca africana, provocada pelas eras glaciais de 150.000 anos atrás, que exterminaram outras espécies e sub-espécies de hominídeos

Por que a caça e a pesca são tão importantes? Por que são uma característica distintiva dos primatas humanos? De acordo com Craig B. Stanford, em seu livro "The Hunting Apes", "as origens da inteligência humana estão ligadas à aquisição de carne, especialmente através das capacidades cognitivas necessárias para a partilha estratégica de carne com companheiros de grupo.." De fato, até os chimpanzés machos utilizam a carne caçada em troca de favores sexuais das fêmeas, por exemplo, e há uma clara vantagem seletiva na seleção sexual por causa disso. Provavelmente os seres humanos fizeram uso extensivo de carne não só como alimento, mas também para influenciar a estrutura social, o sucesso reprodutivo, etc.

As armas de caça foram rapidamente adotadas pelos humanos para matar sua própria espécie. A impressionante sequência de abertura "A aurora do homem" do filme de 1968 de Stanley Kubrick  "2001: A Space Odissey", mostra como os hominídeos poderiam ter descoberto acidentalmente a utilidade das ferramentas, primeiro para a caça e depois para garantir a dominação e a auto-defesa em relação a inimigos.

A guerra usada como uma forma de dominar e aniquilar outros grupos humanos também é muito antiga. De acordo com diversas teorias, a "sub-especiação", ou seja, a dominação de um grupo de animais em relação a outros grupos da mesma espécie através da competição, foi muito importante para a rápida evolução dos seres humanos modernos. O zoólogo da Universidade Harvard, Dr. Edward O. Wilson, autor do influente livro  "Sociobiology" argumentou que o genocídio sistemático, tal como é praticado ainda hoje, foi uma forma encontrada pela espécie humana para acelerar o trabalho da Natureza e promover a propagação do conjunto de genes de um grupo particular. A incidência de guerra da história humana é mais que suficiente para documentar essa característica permanente da inteligência humana e da cultura. 

Matar outros seres humanos como comida também foi importante e existiram tribos canibais em todos os continentes até recentemente. A ocorrência de canibalismo entre neandertais, por exemplo, foi demonstrada recentemente pela descoberta de ossos humanos com marcas de corte e raspagem por ferramentas de pedra, muito semelhantes às encontrados em presas animais. 

Em conclusão, podemos dizer que, sem ferramentas de pedra, osso, madeira e chifre, os seres humanos não teriam evoluído para uma inteligência superior, e vice-versa, ou seja, estas alavancaram o desenvolvimento cerebral, em uma espécie de ciclo auto-alimentado relativamente rápido, do ponto de vista evolutivo. Essas habilidades evoluíram a partir de bipedalismo, que liberou as mãos para estas tarefas de manuseio, transporte e fabricação, bem como o desenvolvimento de um tipo especial de dedo polegar, encontrado apenas em primatas não humanos. Como a fabricação de ferramentas não é uma habilidade inata ou instintiva e não pode se propagar através de genes, a única maneira de passá-lo de geração a geração é através da tradição cultural, o ensino e o aprendizado por imitação,  o que também pressupôe alguma forma eficaz de comunicação entre  mestres e aprendizes. Esta pode ser vista como uma das origens pragmáticas da linguagem!  Muitas outras espécies de macacos podem aprender desta forma, também (como foi comprovado pelo estudo agora famoso de macacos Rhesus na ilha japonesa de Hokkaido, que espalharam entre si a "cultura" de lavar batatas, ensinadas a eles pelos pesquisadores), mas a ausência de  linguagem deles certamente limita o âmbito e profundidade de aprendizagem cultural.


"A Evolução da Inteligência"
Renato M.E. Sabbatini, PhD
Revista Cérebro & Mente, Fev/Abr 2001

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Copyright (c) 2001 Renato M.E. Sabbatini
Universidade Estadual de Campinas, Brasil
Piblicado inicialmente em 15 de fevereiro de 2001.
Atualizado em 18 de setembro de 2011

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