Neurônios e Sinapses
A História de Sua Descoberta

Renato M.E. Sabbatini, PhD

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V. Transmissão Química

Nas primeiras décadas do século XX, a pesquisa sobre a mediação química da ação do sistema nervoso vegetativo, como era chamado então o SNA, estava se desenvolvendo a uma velocidade febril em muitos laboratórios do mundo. Os principais centros estavam localizados na Inglaterra, onde William Maddock Bayliss (1860-1924), Ernest Henry Starling (1866-1927), Henry Hazlett Dale and T.R. Elliot investigavam as ações e propriedades do sistema através da farmacologia das recém-identificadas acetilcolina e adrenalida. Otto Loewi, que era professor de fisiologia em Viena, na Áustria, decidiu embarcar também nesses estudos, e passou algum tempo em 1902 visitando os laboratórios de Bayliss, Starling e Elliot em Cambridge, onde conheceu Henry Dale.

Após trabalhar 12 anos na farmacologia do Sistema Nervoso Autônomo, agora como professor da Universidade de Graz, na Áustria, ele idealizou o experimento crucial que comprovou de forma confiãvel pela primeira vez a existência de transmissão química no SNA. A lenda diz que ele teve a idéia para o experimento em um sonho, tendo corrido ao laboratório de madrugada para fazer o experimento, para não correr o risco de esquecer a idéia.



O Experimento de Otto Loewi (1921)

T = tempo
S = estimulação do nervo vago
D = contrações do coração D
R = contrações do coração R






Registro quimográfico original do experimento de Loewi
O experimento era muito simples e se tornou um protótipo para todas as investigações subseqüentes de fatores humorais (ou seja, químicos) no sistema nervoso. Ele isolou dois corações de sapo e os perfundiu com uma solução fisiológica morna (Ringer). Nestas condições, os corações continuam vivos e batendo por algumas horas. Ele então estimulou o nervo vago de um dos coreações (R). Em conseqüência, ocorreu uma forte inibição das contrações cardíacas espontâneas daquele coração. O segundo coração (D) não era afetado, a não ser que ele o perfundisse com o líquido efluente do coração estimulado. Nesse caso, ele conseguia no segundo coração exatamente o mesmo efeito que no primeiro, com um pequeno retardo, provocado pela ação da bomba e pela ação química em si.

A única explicação para este resultado é que havia alguma substância no coração R, que era liberada pela ação do sistema parassimpático, e que tinha o poder de agir sobre a sinapse neuromuscular do mesmo sistema no coração D. Loewi batizou essa substância de
Vagusstoff (substância vagal). Ele estava convicto de que ela era a acetilcolina, como se comprovou posteriormente, mas decidiu exercer um pouco de cautela, como ele mesmo afirmou.

Após usar a mesma preparação para estudar os efeitos da estimulação do sistema simpático, ele obteve um efeito oposto, conforme o esperado: ao estimular os nervos ganglionares do coração R, ele obteve uma aceleração dos batimentos e da força de contração do coração D, em um efeito similar à adrenalina injetada. Com a mesma cautela, ele chamou-a de
Acceleransstoff (susbtância acelerante). Ele também cunhou o termo "transmissão neuro-humoral" para explicar o que tinha descoberto.
Não obstante, Loewi duvidava ainda, que se pudesse generalizar essa descoberta para o sistema nervoso como um todo, ou seja, se existia transmissão neuro-humoral também no SNC. As pesquisas nesta área eram muito mais difíceis de serem realizadas, pois não haviam ainda técnicas adequadas para isso. Sir Henry Dale, em uma série de experimentos elegantes entre 1929 e 1936, determinou que a acetilcolina também era o neurotransmissor na sinapse entre o sistema nervoso e o músculo esquelético, e que as sinapses ganglionares no SNA eram todas colinérgicas, em contraste com as pós-ganglionares, que podiam ser colinérgicas ou adrenérgicas, conforme tinha sido demonstrado por Loewi. Deste modo, Dale ponde concluir que::

"De acordo com esta evidência relativamente nova, o mecanismo químico da transmissão diz respeito não apenas aos efeitos dos nervos autonômicos, mas também como a totalidade das atividades eferentes do sistema nervoso periférico, seja voluntário ou involuntário em função" [Dale, 1936].

Dale também foi o primeiro a isolar acetilcolina de órgãos de mamíferos e a inventar os termos "sinapse colinérgica" e "sinapse adrenérgica".

Loewi e Dale, que eram amigos desde 1906, continuaram seus esforços no sentido de esclarecer o papel dos neurotransmissores na função nervosa. Eles compartilharam o prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia de 1936 por suas descobertas. Por ser judeu, Loewi teve que abandonar a sua querida Áustria quando a mesma foi anexada por Hitler, e estabeleceu-se nos EUA.

Tempos Modernos

As sinapses continuaram a ser estudadas de vários ângulos por fisiologistas e farmacologistas. No entanto, progresso real começou a ser obtido apenas quando o desenvolvimento técnico da neurofisiologia permitiu o uso das chamadas técnicas celulares, ou seja, o uso de microeletrodos com pontas extremamente finas. Desta maneira, eles podiam ser inseridos no cérebro, na proximidade, ou até dentro dos elementos sinápticos, e usados para estudar sua eletrofisiologia. Foi Sir John Carew Eccles (1903-1997), um australiano de Melbourne, que foi o brilhante pioneiro nesta área, juntamento com o inglês Sir Bernard Katz.

Sir John C. Eccles
Sir John Carew Eccles

Sir Bernard Katz
Sir Bernard Katz


Ulf von Euler


Julius Axelrod

Eccles começou a estudar a junção neuromuscular, a sinapse especializada entre os neurônios motores e os músculos esqueléticos. Este era um objeto favorito de estudo dos primeiros "sinaptólogos", devido à facilidade de se montar preparações isoladas, e porque era grande e de acesso fácil. Eccles, no começo de sua carreira de investigador, quando ainda trabalhava na Universidade de Oxford, entre 1934 a 1937, acreditava que as sinapses centrais eram de natureza elétrica, e resistia à proposta de transmissão química feita por Sir Henry Dale e seus seguidores. Sir Bernard Katz tinha demonstrado de forma irrefutável, usando eletrodos intracelulares, que a junção neuromuscular era química. Ele também tinha conseguido explicar que as pequenas flutuações de potencial de membrana da junção neuromuscular eram devidas à liberação aleatória de pequenas quantidades de acetilcolina, cujo mecanismo evidenciava a "natureza quantal" desse mecanismo, evidenciando indiretamente a existência de vesículas. Esses resultados foram comprovados e integrados com os obtidos pela microscopia eletrônica.

Após retornar à Austrália em 1951, Eccles conseguiu, pela primeira vez, inserir microeletrodos em células do sistema nervoso central, e registrar as respostas elétricas em nível de sinapse. Ele descobriu aquilo que havia sido predito por Sherrington meio século antes, ou seja, que existiam duas formas de potenciais pos-sinápticos gradativos na mesma célula: os potenciais pós-sinápticos excitatórios (EPSP, em sua sigla em inglês), e inibitórios (IPSP), e que eles eram devidos à descarga de diferentes neurotransmissores pré-sinápticos. Além disso, ao longo das décadas seguintes, a extraordinária produtividade de Eccles foi capaz de demonstrar o papel de diversos íons na gênese destes potenciais, como o sódio, o potássio e o cálcio.



Microeletrodo de vidro com ponta ultrafina, preenchido de solução salina eletrocondutora. A escala corresponde a 5 micrômetros.


Um aparelho estirador de micropipetas de vidro.

Sir John Eccles e Sir Bernard Katz foram ambos honrados com o Nobel de 1963 e 1970, respectivamente.

A descoberta que o transmissor nas sinapses adrenérgicas não era a adrenalina, e sim uma substância correlata, a noradrenalina, foi feita pelo pesquisador sueco Ulf Von Euler (1905-1983), e estudada extensamente pelo pesquisador americano Julis Axelrod (1912-). Ambos compartilharam com Katz o prêmio Nobel de 1970.

Conclusões

A descoberta de como o sistema nervoso é organizado e trabalha em nível celular constitui uma dos mais fascinantes e ricos episódios da história da ciência. Ela começou com um novo e poderoso conceito, o da bioeletricidade, mas ainda sem o conhecimento de como ela era gerada, pois devemos nos lembrar que até 1838 a ciência nem sequer sabia que os organismos vivos eram constituídos de células e qual era a função dos diferentes processos filamentosos descobertos em seções histológicas do sistema nervoso, ou que eles eram de alguma forma relacionados aos "glóbulos" no tecido. O progresso científico foi bastante lento no princípio, devido aos obstáculos técnicos. Por exemplo, levou meio século (de 1838 a 1888) para mudar-se a visão de que o sistema nervoso não era uma gigantesca rede sincicial (a hipótese reticularista), para a idéia atualmente aceita de que os neurônios são células individuais, como a maioria dos tecidos achados no organismo (a doutrina neuronal).

Em retrospectiva, os três longos "platôs" de pequeno progresso, intercalados entre súbitos saltos, foram devidos principalmente a razões tecnológicas. O primeiro grande passo (a descoberta de neurônios, dendritos e axônios), foi devido à invenção do microscópio acromático moderno, em 1824. O segundo grande passo (a descoberta de que os neurônios não se fundem, e que os dendritos e axônios fazem parte dos neurônios), foi devida à descoberta do método de coloração de prata, por Golgi e Cajal, em 1887. O terceiro grande passo foi conseguido apenas com as técnicas microeletrofisiológicas, equipamentos eletrônicos de amplificação de alto ganho, etc.), na década dos 40s, e com a microscopia eletrônica, na década dos 50s. Com isso, os derradeiros fatos fundamentais sobre a sinapse foram conquistados!




Neurônios e Sinapses: A História de Sua Descoberta
Por Renato M.E. Sabbatini, PhD
Revista Cérebro & Mente, 17, Maio-Agosto de 2003
Copyright 2003 Renato M.E. Sabbatini

Parte 5 de 6
Publicado em 25.Mai.2003