David Ferrier
Uma Breve Biografia

Renato M.E. Sabbatini, PhD
David Ferrier nasceu em Aberdeen, Escócia, em 1843. Ainda estudante de medicina, Ferrier começou a trabalhar sob a orientação do influente psicólogo e filósofo livre-pensador Alexander Bain (1818-1903), um dos fundadores da psicologia associativa. Por volta de 1860, a psicologia científica começava a se desenvolver na Alemanha, recebendo um enorme impulso com os trabalhos cientificamente rigorosos de Hermann von Helmholtz (1821-1894) e Wilhelm Wundt (1832-1920). Eles se dedicavam principalmente à área da psicofisiologia sensorial, que era a que mais se prestava a uma abordagem experimental baseada nos paradigmas da física. Ambos trabalhavam na Universidade de Heidelberg, o que provavelmente levou Bain a instigar o jovem Ferrier a fazer um estágio naquela universidade, uma decisão que certamente foi importante da definição dos interesses futuros. Ao voltar da Alemanha, Ferrier formou-se em medicina na Universidade de Edinburgh. Poucos anos depois, passou a trabalhar simultaneamente como neurologista no King´s College Hospital e no National Hospital for the Paralyzed and Epileptic, na cidade de Londres, em 1870. Este foi o primeiro hospital inteiramente dedicado a tratar doenças neurológicas.

Na época, o grande neurologista John Hughlings Jackson (1835-1911), que também tinha trabalhado no mesmo hospital que Ferrier, estava terminando de dar os retoques em uma grandiosa concepção teórica das funções sensoriomotoras do sistema nervoso, com base nos conhecimentos induzidos a partir da experiência clínica. Jackson propunha uma base anatômica e fisiológica organizada hierarquicamente para a localização das funções cerebrais. Influenciado por Jackson, e decidido a demonstrar que as funções sensoriais e motoras tinham representação cortical específica, Ferrier decidiu embarcar em um programa experimental que procurava estender os resultados obtidos por dois pesquisadores alemães, Eduard Hitzig (1838-1907) e Gustav Fritsch. Estes, em 1870, tinham atraído enorme atenção com seus experimentos de estimulação elétrica localizada do córtex motor de cães. Ferrier também desejava comprovar se a epilepsia tinha origem cortical, como sugeriam os achados clínicos de Jackson,.

Ferrier recebeu então uma proposta de estabelecer um laboratório de pesquisa experimental em neurologia com animais (principalmente cães e macacos) no West Riding Lunatic Asylum, um hospital psiquiátrico de Yorkshire, que era dirigido por seu amigo James Crichton-Browne (1840-1937). Trabalhando com boas condições materiais e uma abundância de animais para experimentação, Ferrier iniciou em 1873 seus experimentos de lesão e estimulação elétrica seletiva do córtex, e já ao final do mesmo ano, tinha resultados para relatar, em um congresso interno e em uma publicação na revista do hospital. Ele tinha conseguido demonstrar, com espetacular sucesso, que a estimulação farádica de baixa intensidade no córtex nessas duas espécies de animais comprovavam a existência de áreas específicas. Estas. se lesadas, levavam a um déficit motor ou sensorial correspondente. Comprovou também que a intensidade maior da estimulação provocava movimentos dos membros, pescoço e face evocativos da epilepsia jacksoniana (epilepsia motora parcial), e que convulsões epilépticas também podiam resultar da estimulação excessiva.

Esses e outras pesquisas, que foram feitas na mesma linha por Ferrier e seus colaboradores, deram-lhe fama internacional e asseguraram o seu lugar permanente no panteão dos grandes cientistas da neurofisiologia e neurologia experimental e clínica de todos os tempos. Com apenas 33 anos de idade, foi eleito membro da prestigiosa Royal Society. Ferrier foi também o primeiro fisiologista a fazer uma transposição dos seus achados em animais para seres humanos, propondo um mapeamento cortical em regiões análogas. Essa ousada proposta logo teve suas conseqüências práticas na neurologia. Especialmente, chamaram a atenção da imprensa da época as aplicações de seus achados na neurologia clínica e neurocirurgia. Um cirurgião escocês, Sir William Macewen (1848-1924) demonstrou em 1879, e, posteriormente dois médicos ingleses, um clínico, Hughes Bennett, e outro cirurgião, Rickman J. Godlee demonstraram em 1884, através de vários casos, como era possível determinar apenas com o exame clínico o local possível de um tumor ou outra lesão cerebral, através dos seus efeitos sobre a motricidade e percepção do paciente (método posteriormente denominado de mapeamento neurológico funcional). Hughlings Jackson e Ferier estiveram presentes em 25 de novembro de 1884 na primeira operação de Godlee, que era sobrinho de Sir Joseph Lister (1827–1912), o descobridor da antissepsia, e a qual já utilizava na época.

Esses resultados práticos da pesquisa animal foram fundamentais, inclusive, para que Ferrier escapasse ileso, em 1881 de uma ruidosa perseguição judicial que os ativos antivivissecionistas britânicos da época empreendiam contra o uso inumano de animais para a investigação em medicina experimental.

Das publicações de Ferrier, dois livros se destacam. O primeiro deles, publicado em 1876, "The Functions of the Brain", descreve seus resultados experimentais e foi muito influente nos anos seguintes, sendo considerado um dos clássicos da literatura da neurociência. Ele editou em 1886 uma edição consideravelmente revista e ampliada com novos resultados. O segundo livro, intitulado, publicado doiss anos depois, "The Localization of Brain Disease", tratava mais das aplicações clínicas do localizacionismo cortical, integrando os resultados do seu preceptor e ídolo, Hughlings Jackson, com os seus, como ambicionara desde o início. Juntamente com seus amigos Hughlings Jackson e Crichton-Browne, Ferrier foi um dos fundadores da revista Brain, dedicada à colaboração entre a neurociência clínica e a básica, a qual existe até hoje. O número inaugural da revista foi publicado em 1878.

A partir de 1883, Ferrier afastou-se progressivamente das investigações experimentais, e passou a dedicar-se mais à clínica. Ele faleceu em 1924, em idade avançada, vítima de uma pneumonia.


Para Saber Mais



Por Renato M.E. Sabbatini, PhD
Revista Cérebro & Mente, 18, Ago/Out de 2003
Copyright 2003 Renato M.E. Sabbatini
Publicado em 11.Mar.2003