A História da Neuroimagem

Renato M.E. Sabbatini, PhD

Voltar ao índice


2. Os Raios X: a Nova Luz

A descoberta dos raios X foi feita em 1895, quase que por acaso, por um físico alemão, Wilhelm Conrad Röntgen (1845-1923), na Universidade de Würzburg. Röntgen estava estudando as propriedades da fluorescência em tubos de vidro altamente evacuados, com filamentos elétricos aquecidos submetidos à grandes diferenças de voltagem. Descobertos em 1876 por um físico inglês, Sir William Crookes (1832-1919), os tubos de raios catódicos demonstravam a geração de luminosidade através da aceleração de elétrons que eram produzidos pelo aquecimento elétrico do catodo. Outro físico inglês, Sir Joseph J. Thomson (1856-1940), demonstraria a existência dos elétrons usando um tubo semelhante, em 1897. Os tubos de Crookes foram também a base para a construção do primeiro osciloscópio, pelo físico e engenheiro alemão Karl Ferdinand Braun (1850-1918), também em 1895. Máquinas eletrostáticas e bobinas elétricas eram usadas para gerar as grandes voltagens necessárias para alimentar o tubo de raios catódicos. Crookes, Thomson e Braun receberam o prêmio Nobel de física por suas pesquisas.



Tubo de demonstração de raios catódicos de Crookes. A cruz de Malta de metal,
colocada entre o catodo e o anodo servia de sombra para os raios catódicos, que
geravam uma fosforescência ao colidirem com o vidro na frente do tubo.

No dia 8 de novembro de 1895, na tentativa de bloquear o efeito da luminosidade externa sobre a fluorescência que emanava naturalmente de um novo tipo de tubo, denominado de Crookes-Hittorf, Röntgen colocou-o dentro de uma caixa de papelão e escureceu o ambiente. Ao fazer isso, notou, espantado, que uma folha de papel com platinocianato de bário, colocada a alguns metros do aparelhamento, fosforecia no escuro. Alguma coisa estava sendo emitida pelo tubo, pois, ao desligá-lo, a fosforescência desaparecia. Röntgen começou então uma febril série de experimentos, ao longo das sete semanas seguintes, procurando entender a natureza do fenômeno. Interceptando vários objetos entre o tubo de Crookes e o detector, notou que alguns, como a água e o papel, eram transparentes a algo que ele, imediatamente, reconheceu como sendo um novo tipo de radiação. Outros, por sua vez, eram opacos e bloqueavam a transmissão, como os metais. Em um determinado momento, ao colocar a sua mão sobre o detector fosforescente, viu, subitamente, o débil contorno dos seus próprios ossos! Deve ter sido um momento absolutamente fascinante e mágico para Röntgen: pela primeira vez, a humanidade podia observar o interior do corpo, em um organismo intacto, por meio de aquilo que foi por muitos anos conhecidos pelo nome de seu descobridor: o roentgenograma. Um resultado totalmente inesperado de uma simples investigação física básica.



Ilustração da época, com reconstituição da primeira radiografia da mão.
Notar a bobina elétrica, o tubo de Crookes e a placa fotográfica.

Ao lado: o que se acredita ser a primeira radiografia da história, tirada
por Röntgen em novembro de 1895, da mão de sua esposa.

Röntgen também descobriu que a radiação, a qual ele denominou de raios X (em referência ao "x" do desconhecido, da matemática), era capaz de impressionar um filme fotográfico, e assim fez o que foi a primeira radiografia da história, da mão de sua esposa. São claramente visíveis os ossos da mão e um anel de metal (diz-se que ela ficou tão assustada com a imagem fantasmagórica do seu próprio corpo que nunca mais entrou no laboratório de seu marido).

Röntgen rapidamente escreveu um artigo comunicando seu extraordinário achado, o qual apresentou à sociedade científica de Würzburg, em 28 de dezembro do mesmo ano. Demonstrando a técnica para a fascinada platéia, Röntgen fez uma radiografia do presidente da sociedade, o eminente neurocientista Albert von Kölliker (que ficou mais tarde muito conhecido por apoiar a doutrina neuronal e batizar as células neurais com o nome de neurônio). O próprio Röntgen foi o primeiro a notar o potencial de sua descoberta para a medicina.

William Conrad Röntgen

Laboratório de Röngten em Würzburg, com o
equipamento utilizado para a produção de raios X


Radiografia da mão de
Albert von Kölliker, feita
por Röntgen em 1895.

A descoberta dos raios X logo se espalhou pelo mundo com impressionante velocidade, atiçando a imaginação da imprensa, de leigos, cientistas e médicos. Basta dizer que apenas em 1896 foram escritos mais de 50 livros e alguns milhares de artigos sobre o fenômeno.  Já em fevereiro de 1896, apenas três meses depois da descoberta de Röntgen, foram realizadas, nos EUA, as primeiras aplicações clínicas práticas da radiologia, ao ser usada para identificar fraturas ósseas, no serviço do Dr. Edwin Frost, no Darthmout College. Em poucos meses, praticamente todos os centros urbanos de importância médica tinham adotado a nova tecnologia, com incontáveis variações.

Podemos dizer que nunca houve, na história da ciência, um período tão curto transcorrido entre uma descoberta fundamental e sua primeira aplicação, particularmente na ciência médica. Isso é particularmente extraordinário por ter ocorrido em uma época em que as dificuldades e lentidão da comunicação científica eram imensamente maiores do que as atuais! Wilhelm Röntgen ganhou o prëmio Nobel de 1901 por sua revolucionária contribuição à ciência, que não se limitou à Medicina, mas que foi a maior beneficiária dos raios X. Nas décadas seguintes, diversas melhorias técnicas, como o tubo de raios-x de Coolidge (1913), e o aparelho móvel de radiografia para hospitais (1920), ambos desenvolvidos pela empresa americana General Electric, foram sendo introduzidos, tornando os raios de Röntgen uma das mais revolucionárias invenções da história da medicina, e possibilitando o aparecimento de uma nova especialidade médica, a radiologia (que, por muitos anos, foi chamada de roentgenologia, como homenagem ao seu fundador). Descobriu-se também que os raios X tinham efeitos lesivos sobre as células do corpo (mas apenas depois que incontáveis médicos e técnicos morreram por câncer induzido pela radiação) e que portanto podiam ser usados para vários tipos de terapias, inclusive o próprio câncer.


Primeiras aplicações clínicas da radiografia nos EUA (fratura do antebraço) na clínica do Dr. Edwin Frost (1896)

Uso do fluoroscópio para diagnóstico na clínica Rome Wagner (1897)


Equipamento móvel de radiografia em ambulância (1904)


Maleta com equipamento portátil de radiografia (Skyagraph, 1900)

Na neurociência, entretanto, os raios X como método de imagem não foram um sucesso total, por vários motivos. O tecido nervoso tem baixissima radio-opacidade e está encerrado em uma caixa óssea externa espessa, que funciona como forte barreira. Além disso, ao contrário de outros órgãos, como o coração, o pulmão e os intestinos (que foram os mais radiografados desde o início, principalmente depois da descoberta dos contrastes rádio-opacos de bário e bismuto, pelo fisiologista americano Walter B. Cannon (1871-1945), em 1896), a típica projeção planar dos raios X sobre o filme fotográfico dificulta a localização tridimensional tão característica do cérebro. Os neurologistas logo descobriram que as radiografias do crânio mostravam muito pouco da estrutura interna cerebral. Podia se visualizar debilmente os ventrículos cerebrais e um pouco do parênquima, mas as aplicações iniciais foram no diagnóstico de patologias relativamente grosseiras, como hemorragias subdurais, nódulos calcificados, grandes traumas e alguns tumores. O grande neurocirurgião americano Harvey William Cushing (1869-1939) foi o primeiro a utilizar sistematicamente o raios X como auxílio às cirurgias do sistema nervoso, como em 1899, quando foi conseguiu determinar com radiografias a localização mais exata de tumores.


Harvey Cushing


Walter Dandy


Egas Moniz

Foram necessários, portanto, alguns desenvolvimentos técnicos adicionais para que os raios X se tornassem mais úteis à neurociência básica e clínica. Destes, destacaram-se quatro grupos de técnicas:

A ventriculografia. O cirurgião americano Walter E. Dandy (1886-1946) descobriu em 1918, que, ao injetar ar por meio de uma agulha, diretamente nos ventrículos cerebrais, eles se destacavam na radiografia, permitindo assim um grau adicional de referência espacial, além dos acidentes ósseos. Essa técnica, denominada de pneumoencefalografia, foi usada por muitas décadas, até se descobrir que meios iodados injetados nos ventrículos forneciam um contraste melhor.
A fluoroscopia: O grande inventor e cientista americano Thomas Alva Edison (1847-1931) interessou-se pelos raios X logo após a sua descoberta, e aplicou seu extraordinário gênio inventivo ao seu aperfeiçoamento e popularização. Entre outras coisas, ele desenvolveu um fluoroscópio portátil em 1896, que consistia de uma tela fluorescente sensível aos raios X, que podia mostrar a imagem sem necessidade de radiografar fotograficamente. Edison pesquisou 8.000 compostos até determinar que o tungstato de cálcio era o melhor agente fluorescente, e passou a comercializar o Vitascope Fluoroscopy Unit, que se tornou grandemente popular, com demonstrações públicas. O fluoroscópio logo mostrou sua utilidade na medicina, ao permitir a observação de imagens internas do corpo em movimento, como o coração, o aparelho fonador, etc. No mesmo ano de 1895, Michael Pupin desenvolveu um método de obter radiografias usando filmes fotográficos impressionados diretamente pelo fluoroscópio de Edison, reduzindo assim dramaticamente o tempo de exposição necessários, para alguns segundos. O fotógrafo inglês Eadweard Muybridge também foi o primeiro a fazer filmes de uma perna de râ em movimento.
  A arteriografia. O neurologista português Antônio Egas Moniz (1847-1955) descreveu em 1927 como as artérias apareciam com grande detalhe contra o fundo de um parênquima cerebral mais tênue, ao injetar uma solução de iodeto de sódio nas artérias carótidas. O método (posteriormente batizado também de angiografia cerebral), revelou-se muito útil para o diagnóstico e localização de aneurismas, malformações vasculares, derrames hemorrágicos, etc., além de proporcionar novas referências espaciais para a localização tridimensional mais efetiva de alterações intracerebrais. Moniz inventou um equipamento que tirava rapidamente várias radiografias à medida em que o contraste intra-arterial progredia dentro do cérebro, e um outro, para mostrar rapidamente em seqüência as radiografias tiradas, como em um filme ou em um desenho animado. Nascia, assim, um método indireto de estudar função através de um método eminentemente estrutural, como os raios X.
  A planigrafia. Os radiologistas logo descobriram que se tirassem várias radiografias em diferentes incidências e planos, podiam combinar essas imagens para obter uma localização espacial mais específica dentro do cérebro. Foi criada, então uma tecnologia específica, denominada de planigrafia linear, desenvolvida primeiramente em 1931 pelo holandês Ziedses des Plantes (1902-1993). Ela se baseia no movimento linear simultâneo do filme e da fonte de raios X, em direções opostas. Isso mantém o foco sobre a estrutura que se quer obter a imagem, no interior do corpo, que aparece mais nítida, em contraste com as estruturas distantes desta, que aparecem desfocadas. Des Plantes reconheceu imediatamente o valor da planigrafia para as imagens do interior do cérebro,e publicou o primeiro trabalho a respeito. Posteriormente, a planigrafia recebeu o nome mais apropriado de tomografia linear (do grego "tomos", que significa "corte"). O italiano Alessandro Vallebona (1899-1987) em 1930 desenvolveu também uma técnica semelhante, mais sofisticada, que fazia o equipamento girar em torno de um eixo onde estava localizado o paciente, a qual chamou de estratigrafia. Posteriormente, esta técnica foi rebatizada com o nome de tomografia axial, e que foi a antecessora da tomografia computadorizada.


Equipamento francês de tomografia linear (1947)


Alessandro Vallebona, inventor da tomografia axial de raios X


Principio da planigrafia linear de Des Plantes (1931). A estrutura a ser imageada fica na altura do fulcro (ponto constante)


Ziedes de Plantes, inventor da
tomografia linear de raios X

No entanto, apesar de todas essas inovações, a neurociência teve que esperar mais de 70 anos, até que aparecesse um método de imagens por raios X que realmente fosse capaz de preencher os requisitos mínimos para o estudo estrutural do sistema nervoso. Esse desenvolvimento técnico, uma das mais importantes revoluções metodológicas na história da medicina, foi denominada de tomografia axial computadorizada.


A História da Neuroimagem
Por
Renato M.E. Sabbatini, PhD
Revista Cérebro & Mente, 20, Novembro 2003-Janeiro 2004
Copyright 2003 Renato M.E. Sabbatini

Parte 2 de 7
Publicado em 1.Mai.2003