Mapas Cerebrais
O Estudo da Função Cerebral no Século XIX

Os primeiros 25 anos do século XIX testemunharam um crescente interesse pela localização das funções cerebrais. Sem dúvida, a teoria da frenologia de Franz Joseph Gall foi influente em chamar a atenção do establishment científico para esta possibilidade, mas sua teoria frenológica foi baseada em inferências falhas, e não no método científico. Este interesse começou com um episódio curioso: a Academia Francesa de Ciências foi pressionada por Napoleão Bonaparte, que aparentemente ficou furioso com Gall (que tinha se mudado e fazia sucesso em Paris, depois de ter sido expulso de Viena pelas autoridades políticas e religiosas), para estabelecer uma comissão científica para estudar o pedido de Gall para entrar na Academia. Sabiamente, Gall havia submetido seu estupendo trabalho e anatomia sobre o cérebro, que era de classe internacional, ao invés de seu trabalho mais polêmico sobre os "orgãos da mente". A Academia pediu, então, ao principal neurofisiologista da época, Pierre Flourens, que realizasse experimentos em animais, de modo a certificar se as afirmativas de Gall quanto à frenologia eram verdadeiras, em despeito ao fato de que Gall mesmo não tinha solicitado esse teste. Foi negada a sua entrada na Academia, é lógico, mas Flourens gostou da idéia e começou uma linha de pesquisa própria nessa área.

Portanto, começando com os experimentos pioneiros de Flourens, por volta de 1825, as primeiras descobertas relacionadas a esta questão vieram somente quando anatomistas e fisiologistas desenvolveram novos métodos experimentais para intervir diretamente no cérebro e para ver os resultados destas intervenções sobre o comportamento de animais. Estes métodos eram:

  1. A ablação cirúrgica seletiva de partes do cérebro de animais;
  2. A estimulação farádica ou galvânica (elétrica) do cérebro de animais e seres humanos;
  3. Os estudos clínicos, ou seja, pacientes com deficts neurológicos ou mentais tiveram seus cérebros estudados após a sua morte, em uma tentativa de correlacioná-los com alterações detectáveis no tecido cerebral.

Pierre Flourens

Flourens começou por utilizar lesões localizadas do cérebro em coelhos e pombos. Ele foi capaz de demonstrar convincentemente pela primeira vez que as principais divisões do cérebro eram responsáveis por funções muito diferentes. Ao remover os hemisférios cerebrais, por exemplo, todas as percepções, motricidade voluntária e julgamento eram abolidas. A remoção do cerebelo afetava o equilíbrio dos animais, bem como sua coordenação motora, e a destruição do tronco cerebral (medulla oblongata), levava à morte. Estes experimentos levaram à conclusão que os hemisférios cerebrais seriam os responsáveis pelos funções superiores cognitivas, que o cerebelo regularia e integraria os movimentos, e que o tronco cerebral controlaria funções vitais, como a circulação, a respiração e a estabilidade geral do organismo. Por outro lado, ele não foi capaz de de achar (provavelmente porque as espécies de animais que usou têm córtex relativamente primitivo), regiões mais específicas para memória e cognição, o que o levou a acreditar que elas estariam representadas de uma forma difusa por todo o cérebro. Deste modo, Flourens deduziu que diferentes funções realmente podiam ser atribuídas a regiões particulares do cérebro, mas faltava ainda uma localização mais precisa.

Um pombo que teve seu cérebro
lesado em um experimento
por Flourens

Esta foi a visão dominante pelos próximos 30 anos, até que uma série de descobertas clinicas na França e na Alemanha, relacionadas às patologias da linguagem, deram uma pista que as funções mentais superiores poderiam ter, afinal de contas, uma localização específica no córtex. Além disso, novos experimentos com estimulação elétrica mais precisa da superfície do córtex em primatas e cães, realizadas na Inglaterra e na Alemanha, forneceram uma prova mais forte de que havia localização estrita da função no cérebro.

O cérebro autopsiado de "Tan",
o paciente afásico de Broca

A abordagem clínica foi utilizada de forma pioneira pelo médico francês Pierre Paul Broca. Em um trabalho clássico, realizado por volta de 1860-70, ele estudou o cérebro de vários pacientes afásicos (isto é, eles não conseguiam falar; e de fato, um deles, que ficou mais famoso, era capaz de pronunciar uma única palavra: tan). Após sua morte, Broca descobriu que o cérebro de Tan tinha uma zona destruída por neurosífilis, a qual foi delimitada a um lado dos hemisférios cerebrais anteriores (cortex). Esta parte do cérebro se tornou conhecida como área de Broca e é responsável pelo controle da expressão motora da fala. Seus estudos foram confirmados por muitos neurologistas, incluindo John Hughlings Jackson, o prodígio dos neurologistas ingleses, que foi capaz de confirmar a localização da afasia e sua lateralidade, e proporcionar uma integração conceitual impressionante da localização funcional do cérebro, através de sua teoria das hierarquias nervosas, que era baseada na observação que o pensamento e a memória eram menos afetadas por lesões do que as funções mais inferiores, como o controle da respiração e da circulação.

Mais ou menos na mesma época, um neurologista alemão, Carl Wernicke, descobriu uma área similar no lobo temporal, que, quando lesada, levava a um déficit sensorial da linguagem, ou seja, o paciente era incapaz de reconhecer palavras faladas, mesmo quando tivesse sua audição intacta. Wernicke postulou que esta área (que foi nomeada em sua honra). era conectada por sistemas de fibras nervosas à área de Broca, formando assim um sistema complexo, responsável pela compreensão e expressão da linguagem falada.

Pierre Paul Broca

Carl von Wernicke



Gustav Fritsch and Eduard Hitzig

Posteriormente, por volta de 1870, ou seja, na mesma época que os estudos de Broca e Wernicke, dois fisiologistas alemães, Gustav Fritsch e Eduard Hitzig, aprimoraram nosso conhecimento sobre a localização cerebral da função, estimulando pequenas regiões com eletricidade, na superfície do cérebro de cães acordados. Eles descobriram que a estimulação de algumas áreas causavam contrações musculares na cabeça e pescoço, enquanto que a estimulação de áreas cerebrais distintas causavam contrações das pernas anteriores ou posteriores.

Um neurocirurgião chamado F. Krause chegou ao extremo de estimular eletricamente as circunvoluções motoras de pacientes anestesiados, que estavam sendo operados para a remoção de tumores. Seu mapeamento das áreas corticomotoras foram notavelmente precisas, e deram um apoio às pesquisas mais modernas, usando anestesia local, tais como nos experimentos

F. Krause

Sir David Ferrier

Friedrich Goltz

O trabalho de Fritsch e Hitzig foi consideravelmente ampliado, causando um tremendo impacto em nosso conhecimento sobre o cérebro, por uma série de elegantes experimentos realizados por Sir David Ferrier, um neurologista inglês. Entre 1870 e 1875 ele estimulou eletricamente os giros corticais expostos de macacos e de cães, tendo sido capaz de mapear 15 áreas relacionadas ao controle preciso do movimento. Posteriormente ele removeu cirurgicamente alguns desses pontos, demonstrando a abolição da função motora correspondente.

Ferrier fez uma previsão ousada, ao transferir, com boa acurácia, como esses pontos poderiam ser representados no córtex humano, e usou este conhecimento com sucesso, pela primeira vez, para orientar diagnósticos neurológicos e cirurgias de pacientes com lesões ou tumores corticais. Por exemplo, ele previu corretamente a localização de uma lesão cortical em um paciente que tinha paralisia dos dedos e do antebraço de um lado, e deu a indicação para que o cirurgião, Macewen, operasse o paciente e removesse o tumor com maior precisão e certeza de sucesso. .

As idéias de Ferrier se contrastavam fortemente com as de Flourens com relação à localização cortical de funções superiores, assim como de outros pesquisadores de sua época, tais como Friedrich Goltz, o qual não foi capaz de abolir inteiramente as funções comportamentais e motoras localizadas em cães, mesmo quando realizava extensas lesões dos hemisférios cerebrais. Isso levou a uma famosa disputa pública entre Goltz e Ferrier, a qual foi vencida por Ferrier, principalmente prque ele conseguiu demostrar que as lesões cirurgicas nos animais de Goltz tinham poupado algumas áreas motoras e sensoriais. Além disso, era aparente que cães são menos dependentes das funções corticais dos que os primatas.

Córtex de macaco com o mapeamento de pontos de estimulação por Ferrier

No final do século XIX, o conceito de localização cerebral foi firmemente estabelecido nas neurociências. O próximo século testemunharia o uso aumentado de técnicas sofisticadas em animais e humanos, as quais seriam capazes de contruir mapas detalhados das funções cerebrais, tais como o método estereotáxico, desenvolvido pelo fisiologista britânico Victor Horsley.

Sir Victor A.H. Horsley

O aparelho original de Horsley-Clarke


Frenologia: História da Localização Cerebral
Por: Renato M.E. Sabbatini
Em: Cérebro & Mente, Março de 1997, atualizado em Fevereiro de 2003.